O Maior Tabu da Nossa Sociedade: O Abuso Sexual Dentro da Família

O abuso sexual de crianças no seio familiar é uma das realidades mais perturbadoras e silenciadas da nossa sociedade. Apesar da legislação existente, como o artigo 69.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que garante o direito da criança à proteção do Estado e da sociedade, a prática revela um padrão de descredibilização das denúncias e uma resposta judicial que frequentemente não protege os mais vulneráveis. Este fenómeno reflete uma dissociação cognitiva coletiva, onde a sociedade, em vez de enfrentar a dura realidade, opta por mecanismos de negação e projeção da culpa para o progenitor denunciante.
A Realidade Dura e Silenciada
Estudos mostram que mais de 90% dos abusos sexuais contra crianças são cometidos por familiares próximos, e a maioria destes crimes permanece abafada no seio familiar. A razão? Um sistema social e cultural que prefere idealizar os agressores, normalizando as suas condutas patológicas e culpabilizar as vítimas. Este padrão patológico manifesta-se na descredibilização do progenitor que denuncia, a suspeita de abuso, frequentemente a mãe, e na idealização do progenitor abusador.
Esta dinâmica não é nova. Historicamente, a dependência financeira e social das mulheres aos homens impossibilitava denunciar e proteger os filhos. Expressões como “desonrou a filha” eram eufemismos que mascaravam a violência sexual nas crianças e adolescentes. O silêncio e a conivência eram comuns, perpetuando ciclos de abuso de geração para geração, tornando-se numa prática comum. No entanto, o incesto nos seres humanos é uma prática patológica e extremamente traumatizante.
Os danos psicológicos causados pelo abuso sexual são devastadores, comparáveis ao stress pós-traumático sofrido por sobreviventes de tortura ou do Holocausto. Apesar disso, as crianças raramente têm acesso a acompanhamento psicológico especializado. Pois muitos psicólogos – sem formação especializada – minimizar também comportamentos abusivos, e re-vitimizam a criança. O testemunho da criança e os relatórios de psicólogos são desvalorizados, e o sistema falha em fornecer respostas adequadas. Este padrão perpétua a violência e compromete o desenvolvimento saudável da criança.
Hoje, mesmo com maior liberdade económica e social das mulheres, o medo do agressor e a inação das instituições continuam a limitar o combate ao abuso sexual infantil.
A Conivência Sistémica dos Tribunais
Nos processos tutelares cíveis, o sistema judicial muitas vezes perpétua o ciclo de abuso. Segundo a Dra. Clara Sottomayor, os tribunais frequentemente ignoram as suspeitas de abuso sexual, considerando-as alegações infundadas ou, pior, estratégias de alienação parental. Este comportamento reflete uma postura de facilitismo que desprotege a criança, priorizando a reputação do adulto acusado. Em casos onde os exames médico-legais são inconclusivos, a dúvida é interpretada a favor do acusado, ignorando o princípio fundamental de que a proteção da criança deve ser prioritária.
O Papel da Sociedade e a Urgência de Mudança
Enfrentar esta realidade exige coragem coletiva para romper com o silêncio. É imperativo que as instituições, desde escolas a tribunais, sejam capacitadas para reconhecer sinais de abuso e atuar de forma eficaz. Profissionais de psicologia e medicina devem estar preparados para lidar com a complexidade destes casos, enquanto o sistema judicial precisa de adotar uma postura mais protetora e rigorosa. Como enfatiza a Juíza Clara Sottomayor, “proteger a criança é função do Tribunal, e, para uma criança, mais grave do que crescer sem pai, é, seguramente, crescer junto de um pai que abusa sexualmente de si.”
A sociedade deve, ainda, abandonar a sua dissociação cognitiva coletiva e enfrentar que o abuso sexual infantil é uma realidade presente e perturbadora. Negar ou minimizar esta violência equivale a perpetuá-la. Ouvir, acreditar e proteger as crianças são passos essenciais para quebrar o ciclo de abuso e construir uma sociedade mais justa e humana.
Conclusão
O abuso sexual dentro da família é um dos maiores tabus da nossa sociedade. A sua invisibilidade é sustentada por uma combinação de inércia institucional, ignorância social e conivência coletiva. Contudo, este silêncio deve ser quebrado. Proteger as crianças não é apenas uma questão de responsabilidade individual; é um dever moral e social que exige uma transformação profunda na forma como entendemos, enfrentamos e resolvemos este crime. Apenas assim poderemos assegurar que as futuras gerações cresçam num ambiente seguro e digno, livre de abuso e violência.
REFERÊNCIAS
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