A Prioridade dos Tribunais nos Casos de Violência Doméstica e Abuso Sexual Infantil: O Direito do Progenitor Versus a Protecção da Criança

Nos processos de violência doméstica e abuso sexual de crianças, é recorrente observar que os tribunais tendem a privilegiar o direito do progenitor em detrimento da protecção da criança. Esta prática coloca menores em situação de risco, obrigando-os a manter contacto, através de visitas vigiadas, com o progenitor agressor ou abusador, mesmo quando a investigação criminal ainda não está concluída. De acordo com a legislação em vigor, tais investigações não deveriam ultrapassar oito meses. No entanto, na prática, estes prazos são frequentemente ignorados, perpetuando situações de risco para a criança e para o progenitor protetor.
O Problema das Visitas Vigiadas
Frequentemente, argumenta-se que “as visitas são vigiadas, pelo que nada acontecerá à criança”. No entanto, importa questionar qual o verdadeiro objectivo destas visitas. Será a intenção restabelecer um vínculo para que, no futuro, a criança possa retomar o convívio com o progenitor conflituoso? Esta abordagem ignora completamente os impactos psicológicos de tal contacto.
Ao ser forçada a interagir com o seu agressor, a criança revive o trauma, desencadeando sintomatologia que, a médio prazo, pode evoluir para patologias graves, como a perturbação de stress pós-traumático complexo, ansiedade generalizada e depressão. É também fundamental reconhecer que uma criança não possui um desenvolvimento neurológico adequado, especialmente ao nível do córtex pré-frontal, para gerir emoções intensas e situações de elevado stress. Assim, a imposição destas visitas não só falha na protecção da criança, como pode agravar o seu sofrimento.
A Aplicabilidade do Princípio “In Dubio Pro Reu”
A aplicação do princípio “in dúbio pro reu” (na dúvida, decide-se a favor do arguido) não pode ser utilizada como pretexto para descurar o superior interesse da criança. Se os tribunais optam por não condenar por falta de provas, que assim seja, mas o que mulheres e crianças exigem são medidas de protecção eficazes. Em caso de dúvida, a segurança da criança deve prevalecer. A criança deve estar no Centro do processo.
Crenças e Expressões que Perpetuam a Desvalorização da Mulher e o Risco para a Criança
Há um conjunto de crenças enraizadas na sociedade e no sistema judicial que contribuem para a perpetuação destes problemas, tais como:
- Tratar o comportamento abusivo do progenitor como um “conflito conjugal” e obrigar os progenitores a frequentar “cursos de gestão de conflitos”.
- A ideia de que “o pai agrediu a mãe, mas isso não significa que não seja um bom pai”.
- A insistência de que ambos os pais têm direito a conviver com a criança, mesmo em contextos de VD e ASC.
- A desconsideração de relatos de abuso sexual sob o argumento de que não há provas e acusação de síndrome de alienação parental à mãe, rotulando as mulheres como vingativas e ciumentas.
Muitas mulheres são acusadas de alienação parental ao tentarem proteger os seus filhos, gastando avultadas quantias em processos legais, sem que a maioria consiga suportar estes custos. Os processos são morosos e emocionalmente desgastantes, levando a episódios de ansiedade grave, depressão e, em alguns casos, idealização suicida.
Estudo de Caso: O Caso Rafaela
A história de Eva ilustra bem as falhas do sistema judicial. A sua mãe sofreu violência doméstica durante toda a gestação e após o nascimento da filha. O agressor foi constituído arguido e sujeito a medidas de afastamento. No entanto, apesar das evidências de perigo, foi estabelecido um regime de convívios supervisionados.
Durante os encontros supervisionados, a criança passou a manifestar sinais de trauma: recusa em participar nos convívios, alterações comportamentais, crises de ansiedade e terrores noturnos, entre outros. A mãe reportou os sinais de sofrimento infantil, mas as técnicas de supervisão (CAFAP) desvalorizaram as queixas, atribuindo as reações da criança a “mudanças naturais”.
Com o avançar dos encontros, Eva revelou que o pai lhe bateu durante uma das visitas. As técnicas admitiram ter deixado a criança sozinha com o progenitor, justificando que pretendiam “observar a interação”. Desde então, a criança recusa-se terminantemente a participar nos convívios, o que resultou em novas pressões para que a mãe a obrigasse a comparecer, mesmo contra a sua vontade e em sofrimento.
Fica a pergunta: Qual é o benefício da criança a este tipo de convívios?
Perfis Narcisistas e a Manipulação do Sistema
Os agressores com traços narcisistas seguem um padrão previsível:
No início das relações, recorrem a estratégias de manipulação como o love bombing e o future faking para conquistar as vítimas. Segue-se a fase da desvalorização, onde introduzem o micro-abuso, a violência psicológica, o gaslighting e outras formas de manipulação subtil. Por fim, chega o descarte, momento em que o abuso se torna explícito e, em alguns casos, pode evoluir para violência física, dependendo da duração e intensidade do ciclo abusivo ou da estratégia de manipulação hoovering.
Criam uma imagem social impecável para ocultar os seus comportamentos abusivos e recorrem a macacos voadores para difamar a vítima, envolvendo amigos e familiares na campanha de difamação. O objetivo é isolar a vítima, tornando-a mais vulnerável e facilitando a sua descredibilização, ao ponto de ser rotulada como louca ou histérica.
Usam os filhos como meros instrumentos para satisfazer as suas necessidades narcisistas e atingir o verdadeiro propósito: destruir a vítima, causando-lhe sofrimento através dos filhos.
Mentem compulsivamente e manipulam advogados, polícias, psicólogos, procuradores e juízes com grande sucesso, o que reforça o seu núcleo megalómano. Sentem-se superiores, acreditando serem mais inteligentes do que todos aqueles que conseguem enganar – e, na realidade, conseguem.
Não têm qualquer interesse nos filhos, mas apresentam-se como “pais dedicados” apenas para evitar consequências legais, procurando ilibar-se de um historial de crimes, muitos dos quais arquivados por falta de provas. O narcisista é um mestre do crime invisível, perpetuando violência psicológica e abuso sexual sem deixar marcas físicas. Carece de empatia, o que lhe permite representar com uma “aparente calma” e infringir dor nos outros, inclusive nos filhos.
Conclusão
O sistema judicial deve urgentemente rever as suas práticas para garantir que o superior interesse da criança não seja secundarizado em relação aos direitos parentais de agressores e abusadores. É essencial que a protecção da criança prevaleça sobre a aplicação cega de princípios legais que não consideram o impacto emocional e psicológico nas vítimas. Apenas assim se poderá garantir um futuro mais seguro para estas crianças.
A quem de direito, requeiro, com a máxima urgência, a revisão da legislação que permite que um progenitor suspeito de violência doméstica (VD) e abuso sexual de crianças (ASC), acusado ou condenado, mantenha o direito de obrigar a criança a visitas. Tal disposição legal desconsidera o superior interesse da criança, expondo-a a uma revitimização e a traumas adicionais decorrentes das decisões judiciais.
É imperativo que a proteção da criança prevaleça sobre qualquer outro direito, garantindo-se um ambiente seguro e livre de ameaças para o seu desenvolvimento emocional e psicológico.
Nestes termos, almejo que a devida alteração legislativa aconteça em breve, assegurando que a criança seja efetivamente protegida pelo sistema de justiça.
REFERÊNCIAS
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