A perpetuação do padrão abusivo nos tribunais portugueses: entre a violência doméstica e a visão romantizada da família

Daniela Cosme
Psicologa Clínica e Psicoterapeuta
21 de fevereiro de 2025
A violência doméstica é um flagelo social que exige uma resposta robusta e eficaz por parte das instituições judiciais. Contudo, nos tribunais portugueses, muitas vezes prevalece uma visão romantizada da família, que subestima as alegações de violência doméstica e de suspeita de abuso sexual, perpetuando um ciclo de revitimização para mulheres e crianças. Como sublinhou a juíza conselheira Maria Clara Sottomayor , “prevalece uma visão romantizada da família, frequentemente perpetuada nos tribunais, que tende a desconsiderar as alegações das mães que solicitam restrições de visitas com o objetivo de proteger as crianças, falhando, por vezes, em proceder às investigações necessárias para apurar os factos”.
O impacto do preconceito e do machismo nos processos judiciais
A abordagem dos tribunais no tratamento de casos de violência doméstica reflete, muitas vezes, um discurso homogéneo e ultrapassado, que ignora a complexidade das dinâmicas de abuso. Por todo o país, os profissionais judiciais mostram-se, frequentemente, enraizados em práticas machistas, focados mais nos direitos do progenitor do que na protecção da criança. Esta rigidez institucional impede que se olhe criticamente para as denúncias de violência e de abuso, desvalorizando as vozes das mulheres que corajosamente denunciaram, na esperança de encontrar proteção do sistema.
Não é raro que as mães que denunciam se vejam tratadas como agentes “problemáticos” ou exageradas, enquanto os pais agressores recebem o benefício da dúvida. A prioridade parece ser sempre restabelecer o contacto entre o progenitor agressor e a criança, mesmo quando existem fortes indícios de risco. Este enfoque nos direitos do progenitor sobrepõe-se à segurança e ao bem-estar da criança, ignorando os sinais de perigo e normalizando a violência. Ignorado por completo o trauma e as consequências psicologias. Alias a visão psicológica do desenvolvimento psicológico da criança, o impacto do trauma e os danos psicológicos pelo convívio do progenitor agressivo, ainda não ecoa nos tribunais portugueses.
Revitimização nos tribunais: um ciclo abusivo perpetuado
Para as mulheres que ousam denunciar a violência doméstica, o percurso nos tribunais é muitas vezes uma continuação do abuso sofrido. Entrar no sistema judicial significa, para muitas, enfrentar novas formas de descredibilização e humilhação. Tal como o abusador narcisista, os advogados defensores dos agressores e os intervenientes judiciais replicar estratégias de difamação e de alienação parental, colocando em causa a palavra da mulher e a sua capacidade parental.
A experiência nos tribunais é marcada por práticas insensíveis e, por vezes, invasivas, onde a privacidade das vítimas é desrespeitada e as crianças são expostas a questionamentos inadequados que podem reabrir feridas emocionais. Ao invés de encontrarem proteção, estas mulheres enfrentam um sistema que falha em protegê-las, desconsidera as suas denúncias e reforça as estruturas de poder do agressor.
Além disso, o desgaste financeiro e emocional é uma constante. Os processos são onerosos, e o acesso à justiça torna-se um fardo pesado, especialmente para as vítimas que já enfrentam uma situação de vulnerabilidade. O resultado final, na maioria das vezes, é desolador: apesar das denúncias de violência doméstica ou de suspeita de abuso sexual, a situação permanece inalterada, e o convívio com o progenitor agressor é privilegiado, perpetuando o ciclo de violência.
É essencial que o sistema judicial português passe por uma reforma profunda. A formação dos intervenientes judiciais deve ser prioritária, com foco na compreensão das dinâmicas de violência doméstica, na proteção dos direitos das crianças e na erradicação de preconceitos de género. Só assim será possível garantir que as instituições cumpram o seu papel de proteção e justiça, rompendo com o ciclo de abuso que hoje parece institucionalizado.
Conclusão
A perpetuação do padrão abusivo nos tribunais portugueses não é apenas uma falha do sistema, mas um reflexo de uma sociedade que ainda luta para se libertar de preconceitos profundamente enraizados. Para proteger as vítimas e garantir o superior interesse da criança, é urgente que os tribunais abandonem a visão romantizada da família e reconheçam a gravidade da violência doméstica e do incesto sexual em crianças. E mais do que que formação, que também é necessária, é sem dúvida uma questão de consciência social, que infelizmente ainda paira sobre nós, uma sociedade patriarcal e machista. Sem uma mudança de paradigma, continuaremos a assistir à revitimização das mulheres e crianças que, ao procurarem justiça, encontram apenas um prolongamento do ciclo abuso.
Referências:
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