A função do TRIBUNAL é proteger ou re-traumatizar a CRIANÇA?

Daniela Cosme
Psicologa Clínica e Psicoterapeuta
29 de janeiro de 2025
Face aos inúmeros relatos que me chegam através das minhas consultas como psicóloga clínica e psicoterapeuta, surgem-me dúvidas profundas quanto à verdadeira função do tribunal em processos que envolvem crianças. Em situações de grave risco ou de dúvidas razoáveis sobre a segurança e o bem-estar infantil, é essencial adotar uma postura preventiva, pautada pela cautela e pela proteção da criança. Uma postura que, muitas vezes, parece carecer de aplicação prática nos tribunais.
Ao longo dos anos, tenho percebido que, em muitos casos, a decisão do tribunal em permitir o contacto com um progenitor, denunciado ou arguido, sem que as dúvidas sobre a segurança da criança estejam totalmente dissipadas, coloca em risco o seu bem-estar e, em alguns casos, a sua integridade física e emocional. O direito a visitas e a contactos não pode, em nenhuma circunstância, sobrepor-se ao direito da criança a crescer num ambiente seguro, saudável e livre de danos. Deveria parecer óbvio, mas, lamentavelmente, este princípio ainda não está a ser adequadamente colocado em prática.
A criança, sendo um ser vulnerável, tem o direito fundamental de ser protegida, mesmo na ausência de provas diretas e definitivas de abuso sexual. Este direito à proteção não pode ser comprometido em função de laços biológicos ou de direitos parentais. Em todas as circunstâncias, o convívio com um progenitor ou outro responsável deve ser cuidadosamente analisado e determinado à luz do Superior Interesse da Criança, que deve ser sempre priorizado. Esta é uma obrigação legal, que está consagrada nas legislações nacionais e internacionais, sendo também apoiada por décadas de estudos científicos na área da psicologia infantil e no estudo dos impactos traumáticos.
Se, por um lado, a teoria e a lei são claras e inquestionáveis sobre a necessidade de proteger a criança, na prática, o que acontece nas salas de audiências parece muitas vezes ignorar esta máxima. A pergunta que surge, então, é: qual será o motivo para que o óbvio não esteja a ser seguido? Quantas mais crianças terão de ser sacrificadas até que se chegue à concretização do princípio fundamental da sua proteção? A resposta a esta questão não pode ser encontrada apenas no âmbito legal, mas também numa reflexão ética profunda sobre os valores que orientam a nossa sociedade e o nosso sistema judicial.
O abuso sexual nas crianças sem marcas, ou seja, sem provas para incriminar, como, por exemplo, beijos e toques na vulva, exposição à pornografia, etc. Embora subtil e por vezes difícil de identificar, são igualmente devastadores. E maior parte exercidos por progenitores com perfis narcisistas (sem empatia), que socialmente aparentem ser pais disponíveis e divertidos, mas na intimidade com este duplo vínculo, vão abusando a criança. Raramente, são agressivos, estão próximos de um perfil pedófilo, que brincam e dão doces e depois, abusam.
Diversos estudos científicos têm demonstrado que o abuso sexual, sem marcas, deixa cicatrizes profundas e duradouras na psique da criança, afetando a sua capacidade de estabelecer relações saudáveis, de lidar com emoções e de se desenvolver plenamente. Contudo, os sinais de alerta são bem conhecidos dos profissionais da psicologia e devem ser tidos em conta, sem que se espere por provas irrefutáveis.
Portanto, como alertam os estudos psicológicos, uma criança a abusos sexuais que não deixam marcas físicas, pode apresentar SINTOMATOLOGIA de abuso sexual:
- Pesadelos noturnos;
- Sensação ou real falta de controle esfincteriano,
- Obsessão pela limpeza da zona genital, com padrões de repetição associados ao desconforto percebido;
- Hipersensibilidade genital.
- Masturbação precoce (pois foi hiper-estimulada “antes do tempo”)
Estes sintomas, e outros, devem ser tidos em conta e não desvalorizados pelos tribunais.
Dentro deste contexto, surge uma questão fundamental: qual o benefício que pode advir de uma criança ser obrigada a manter contacto com o seu “objeto traumático” por meio de visitas vigiadas?
O que está em jogo é a possibilidade de re-traumatização, um processo que agrava a dor emocional e que pode prejudicar de forma irreversível o desenvolvimento da criança.
Para ilustrar este ponto, podemos considerar a seguinte analogia: se um adulto, vítima de agressão física por parte de outro, se deparar com o agressor numa situação pública, como num café, mesmo estando a situação a ser vigiada, a vítima passará por uma ativação psico-fisiológica que a levará a reviver a experiência traumática. Agora, imagine-se o caso de uma criança. Ao contrário de um adulto, a criança não possui o desenvolvimento neurológico necessário, particularmente no que diz respeito ao córtex pré-frontal, para lidar com a gestão emocional de situações de intenso stress. Portanto, sujeitar a criança a situações de contacto com o agressor, ainda que monitorizadas, implica um risco considerável de re-traumatização, que prejudica ainda mais a sua saúde mental e emocional.
Com base nesta reflexão, é imprescindível repensar as práticas adotadas pelos tribunais no tratamento de casos que envolvem crianças em situações de risco. Devemos colocar em primeiro plano a proteção integral da criança, sem ceder a pressões externas que possam desvirtuar este princípio. O sistema judicial, bem como todos os profissionais envolvidos, devem assegurar que todas as decisões e ações sejam tomadas com base no Superior Interesse da Criança, priorizando sempre o seu bem-estar e desenvolvimento saudável.
É importante lembrar que a responsabilidade pela proteção da criança não é apenas do tribunal, mas de toda a sociedade, incluindo os profissionais, as autoridades e os cidadãos em geral. Precisamos de uma abordagem mais cuidadosa, informada e compassiva, que garanta que, em situações de dúvida, a precaução seja a regra. O futuro das nossas crianças está em jogo, e todos nós temos um papel a desempenhar na construção de um ambiente seguro e acolhedor para as gerações vindouras.
A responsabilidade é de todos nós, e a proteção das crianças deve ser a nossa prioridade máxima.
REFERÊNCIAS
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• Herman, J. L. (1992). Trauma and Recovery: The Aftermath of Violence—
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