Audições Técnicas Especializadas: Em Traumatizar Crianças!?

Audições Técnicas Especializadas: Em Traumatizar Crianças!?
Publicado em: 25/02/2025

Daniela Cosme

Daniela Cosme

Psicologa Clínica e Psicoterapeuta

19 de janeiro de 2025

Como Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta, a minha atuação centra-se na recuperação de vítimas de relações abusivas, muitas vezes marcadas pela interação com indivíduos com Perturbação da Personalidade Narcisista (PPN). Este trabalho exige lidar com traumas profundos, frequentemente manifestados sob a forma de stress pós-traumático complexo e dissociação cognitiva. Não sendo especialista em Psicologia Forense ou Direito, as reflexões aqui apresentadas decorrem da minha experiência prática e do estudo contínuo sobre o impacto do trauma e as suas consequências, com especial atenção ao empoderamento de mulheres vítimas de abusos psicológicos e emocionais.

A Superação da Condição de Vítima

Um dos objetivos fundamentais do meu trabalho é ajudar estas mulheres a superar o padrão emocional de vítima. Para tal, emoções como a raiva e a zanga – respostas legítimas à violência psicológica, manipulação, traição e humilhação – são trabalhadas para serem redirecionadas para práticas de autocuidado, definição de limites e estratégias de autoproteção. Técnicas como o contacto zero, contacto reduzido e a abordagem da “pedra cinza” tornam-se ferramentas essenciais para romper com o ciclo de abuso.

A transformação pessoal destas mulheres é frequentemente representada pela metáfora da fénix: a capacidade de renascer das cinzas de uma destruição quase total, emocional, psicológica e financeira, para emergir mais forte, empática e conectada com a dor dos outros. Este processo é essencial não apenas para a recuperação individual, mas também para a construção de vidas mais seguras e saudáveis para as crianças envolvidas.

O Papel das Instituições e as Decisões Judiciais

Apesar do avanço da Psicologia Clínica e dos estudos sobre o trauma, é profundamente perturbador constatar que muitas decisões judiciais e relatórios técnicos desconsideram essas descobertas. Instituições que deveriam zelar pelo bem-estar das crianças perpetuam práticas desatualizadas, ancoradas em crenças ultrapassadas sobre a idealização da família – mesmo em contextos de violência doméstica (VD) e abuso sexual de crianças (ASC).

Crenças ouvidas nas Audições Técnicas Especializadas

1. Minimizando a Violência Doméstica

  • “O pai agrediu a mãe, mas isso não quer dizer que não seja um bom pai.”Impacto: Desconsidera a conexão entre violência doméstica e a capacidade de exercer uma parentalidade saudável.

2. Tratando a Criança como um Objeto

  • “Ambos os pais têm direito a conviver com a criança.”Impacto: Trata a criança como um bem a ser dividido, negligenciando o seu bem-estar, segurança e necessidades individuais e consequências traumáticas.

3. Ignorando Denúncias de Abuso

  • “Não há provas de abuso sexual, logo não ocorreu.”Impacto: Ignora a complexidade da revelação de abusos e a dificuldade em produzir evidências tangíveis em casos tão sensíveis.
  • “Foi a mãe que inventou o ASC para afastar a criança do pai.”Impacto: Estigmatiza denúncias legítimas, transformando a preocupação materna num suposto ato de manipulação e alienação parental.

4. Desqualificando Preocupações Maternas

  • “A mãe é que é muito ansiosa, está a precisar de terapia” (se demonstrar preocupação).Impacto: Rotula reações legítimas como patológicas, desconsiderando contextos de violência, ameaça ou medo real.

5. Simplificando as Necessidades da Criança

  • “A criança precisa de um pai e de uma mãe.”Impacto: Reduz as necessidades emocionais da criança a uma fórmula rígida, ignorando a qualidade dos vínculos e os impactos da violência doméstica.

6. Priorizando Direitos sobre Responsabilidades

  • “O pai tem os mesmos direitos.”Impacto: Prioriza a igualdade formal de direitos em detrimento da segurança e do bem-estar infantil, desconsiderando comportamentos nocivos.

7. Reduzindo Vínculos Afetivos a Competição

  • “Não é só a mãe que gosta do filho.”Impacto: Simplifica o vínculo afetivo numa disputa de sentimentos, desconsiderando a qualidade e a segurança das relações.

Essas crenças refletem discursos que, ao serem simplistas e descontextualizados, obscurecem dinâmicas de poder, minimizam situações de violência e comprometem a proteção integral da criança.

Estes discursos continuam a ecoar em contextos judiciais, ignorando décadas de pesquisa sobre o impacto da violência doméstica e do abuso sexual no desenvolvimento infantil.

Casos como o de Noah, que expôs falhas gritantes nas decisões judiciais, são exemplos concretos de como estas instituições colocam crianças em risco ao ignorar a figura de referência segura e ao privilegiar progenitores negligentes ou abusivos. Esta lógica é alarmante, pois trata a criança como um objeto de disputa, desvalorizando os laços afetivos e a segurança emocional essenciais ao seu desenvolvimento saudável.

Ou tantas outras crianças expostas a crimes de incesto que não deixam marcas, ou seja, provas concretas para incriminar os abusadores. Note-se que o incesto é normal no reino animal, mas é altamente traumatizante no reino humano – uma verdade que não deveria exigir debate.

Se não existem provas de crimes sem marcas, é porque não se investiga adequadamente o perfil comportamental do progenitor, muitas vezes narcisista. Como é do conhecimento geral, as investigações simplesmente não são realizadas. A ausência de provas não deve ser interpretada como ausência de crime, mas sim como falha no processo de avaliação e investigação. E se essa investigação não é realizada, a criança jamais poderá ser penalizada. In dubio pro puer (na dúvida, favoreça a criança) não deveria ser a norma mais apropriada, senhores juízes e procuradores?

A Idealização da Família e a Normalização do Abuso

A visão idealizada da família – perpetuada por técnicos que ignoram sinais de violência doméstica ou abuso sexual nas crianças – continua a ser uma barreira significativa à sua proteção. Ao tratar comportamentos abusivos como “desentendimentos familiares normais”, esses profissionais contribuem para a perpetuação da violência e para a revitimização das mulheres e crianças envolvidas.

Mais preocupante ainda é o papel desempenhado por progenitores narcisistas nestas situações. Indivíduos com este perfil são frequentemente mestres na manipulação, projetando uma imagem impecável de parentalidade perante avaliadores institucionais. Estas entidades, por vezes, aceitam este discurso paternalista e descredibilizam, de forma alarmante, a mãe. Relatórios que deveriam refletir um entendimento profundo do trauma acabam por perpetuar a violência emocional, ao ignorarem os sinais de abuso ou ao desacreditarem as vítimas.

Uma Mudança de Paradigma

Estamos num momento em que a sociedade está cada vez mais atenta a estas questões. A atuação de instituições e profissionais envolvidos nas audições técnicas especializadas e decisões judiciais está a ser observada com um escrutínio crescente. Este é o momento de exigir mudanças, de reclamar por práticas que coloquem o bem-estar da criança no centro e que respeitem os avanços da Psicologia Clínica.

Para proteger as crianças e apoiar as vítimas, é crucial reformular a abordagem judicial e institucional. Isto inclui a formação contínua dos profissionais envolvidos, a revisão das práticas de avaliação e a adoção de uma perspetiva que valorize a segurança emocional da criança acima de quaisquer dogmas ou convenções ultrapassadas. Afinal, o objetivo de qualquer sistema que se pretenda justo e humano deve ser a proteção e o cuidado das partes mais vulneráveis da sociedade: as crianças.

Referências Bibliográficas

  • Bowlby, J. (1969). Attachment and Loss.
  • Levine, P. A. (1997). Healing Trauma: A Pioneering Program for Restoring the Wisdom of Your Body.
  • Maté, G. (2018). The Wisdom of Trauma.
  • Piñuel, I. (2020). Familia Zero: Cómo sobrevivir a los psicópatas en la familia (3ª ed.). Madrid: La Esfera de los Libros.
  • Sanderson, C. (2005). Abuso sexual em crianças. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda.
  • Sottomayor, M. C. (2011). A fraude da síndrome de alienação parental e a protecção das crianças vítimas de abuso sexual. Texto correspondente à comunicação proferida na Conferência Internacional, 3 de novembro de 2011.
  • Winnicott, D. W. (1971/1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
  • Winnicott, D. W. (1965/2000). O Ambiente e os Processos de Maturação: Estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional. Porto Alegre: Artmed.